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“Contr’Ignorância”, uma biblioteca de rua para combater a ignorância

Contr'Ignorância
Foto: Joseph Agboola / Unsplash

A pensar nas dificuldades do acesso à informação, conhecimento e escassez de livros nos vários bairros da capital angolana, o jovem professor Adilson Gonçalves, em consonância com um grupo de amigos, decidiu criar em 2020 a biblioteca móvel “Contr’Ignorância”.

Em entrevista à BANTUMEN, Adilson Gonçalves, mentor do projeto, explicou que o nome “Contr’Ignorância” traduz-se na necessidade de combater a ignorância, que “é dos principais problemas do caos social que acaba por afligir comunidades periféricas”. A iniciativa surge como um grito de socorro para chamar atenção sobre o problema que é transversal a quase todos bairros periféricos das cidades de Angola, para não dizer todos.

Génese e motivações

Apesar dos muitos pedidos em vão endereçados às autoridades governamentais para providenciar condições mínimas para o correto desenvolvimento do projeto, Adilson não esmoreceu. “Se não nos ouvem, temos de ser nós a tomar os nossos destinos nas mãos”, afirmou-nos. Mesmo com poucos recursos e condições, desafiou-se, a si e aos amigos, a dar inicio ao projeto. Afinal, por ser professor de língua portuguesa, Adilson entendeu ter uma responsabilidade acrescida com os alunos acusados de não ter o hábito de ler. Foi com os livros que tinha em casa – 116 para sermos exatos – que abriu a primeira biblioteca de rua em Luanda. Estava assim dado o primeiro passo para não entrar no grupo de pessoas que só reclama diante dos problemas que a sociedade lhes apresenta. “Em vez de estar a reclamar constantemente do problema que já existe, que é a falta de bibliotecas nas escolas, concomitantemente na nossa periferia, nos nossos bairros, entendemos que devíamos tomar nas nossas mãos os nossos próprios destinos com os poucos recursos que tínhamos na altura. Começamos, deste modo, o projeto Biblioteca Contra’Ignorância, contou.

Funcionamento

Os seus livros pessoais foram expostos primeiro no quintal da dona Maria Contreiras e, depois de três meses, com a pouca adesão, o projeto passou para a rua. Já lá vão quase três anos, que aos sábados, das 10 às 17 horas, todos podem ter acesso à leitura de forma gratuita. A biblioteca, que na verdade é nada mais do que uma roulote, posicionada na rua do Lula, tem as obras à disposição dos adultos e crianças que por ali passam. A curiosidade é o fator que desperta a atenção e que proporciona o primeiro contato com a iniciativa.

Este é um trabalho que, de acordo com Adilson, para além do coordenador, conta com o apoio de mais sete membros directos, entre designers, promotores de eventos, apresentadores, professores de literatura, contadores de histórias e outros, sem esquecer a ajuda de uma rede de colaboradores que vão desde artistas a radialistas, promotores literários e culturais e uma gama de interessados em ver o projeto a vincar, sobretudo, por causa da importância que tem não só para a comunidade do Marçal, como também para muitas outras comunidades, e com o apoio de pessoas singulares, desde amigos, vizinhos, colegas, e simpatizantes; do Instituto Guimarães Rosa, ex-casa de Cultura Brasil/Angola e também do apoio quase que permanente do Instituto Nacional das Indústrias Culturais (INIC), e apoios de professores, a biblioteca que iniciou com pouco mais que 116 livros, atualmente conta com um acervo de cerca de 1100 livros.

Diversidade cultural

Ao verificar que as comunidades periféricas são carentes de espaços de lazer e que promovam a arte e a cultura, a Contr’Ignorância, além de biblioteca, também é um espaço que promove várias atividades artísticas e culturais. Para o efeito, Adilson garantiu que a organização tem um programa trimestral, com atividades fixas, nomeadamente: aulas de alfabetização para crianças dos 4 a 8 anos, desenho, xadrez; contação de estórias e também um conjunto de atividades periódicas, como concursos de leitura em voz alta, soletração e declamação e performance. Há ainda um clube de leituras infantis, ginástica aeróbica e um ciclo de teatro com o título Teatro Contr’Ignorantes. “Na roda.com”. é o clube de leitura, que já conta com oito edições, realizadas com diferentes escritores, como Cremilda De Lima, Maria Celestina Fernandes, Yola Castro, Domingas Munte, Benjamin Kadi, e Bel Neto. Por fim, além das atividades de caratére solidário, há também o “Diálogos Contr’Ignarantes, virado para os adultos e onde se propõe uma série de temas, que vão desde a literatura a aspetos sociopolíticos.

Dificuldades e perspetivas

Questionado sobre as dificuldades e perspectivas da Contr’Ignorância, Adilson Gonçalves respondeu que, tirando o facto de fazer parte de um grupo de jovens onde a maioria é desempregada, a falta de um espaço fixo constitui uma grande dificuldade, pois, todos os dias têm que abrir e montar a biblioteca e no final do dia desmontar. Destacou também a falta de apoio ou patrocínios, sobretudo, quando realizam atividades culturais, sobretudo porque, depois de quase três anos de existência, com o aumento do acervo, há necessidade de o conservar melhor. “O nosso grande objetivo é conseguirmos um espaço físico, um espaço fixo aqui mesmo. Tem de ser aqui mesmo no nosso bairro Marçal, para podermos então nos instalarmos com maior e melhor comodidade e, fundamentalmente, darmos um outro tratamento ao acervo literário que vamos construindo e que se torna cada vez maior”, confessou. A estas necessidades acrescenta-se a facilitação de acesso a material como papel, afias lápis, borrachas, tendas para garantir a sombra, cadeiras e bancos para acomodar os leitores. Entretanto, a grande ambição da biblioteca Contr’Ignorância é “tornar-se num espaço cada vez mais comunitário, um espaço onde todos os munícipes do Marçal e não só se revejam e se sintam naturalmente representados”, contou Adilson.

“Emancipação periférica”

Para quem já passou por lá, descreve a iniciativa como grandiosa, como é o caso da escritora infantil Bel Neto. Contatada via WhatsApp, a autora considerou a biblioteca como “um viveiro” e disse ainda que “acrescenta valor ao próprio bairro e contribui grandemente para a Cultura”.

“A Biblioteca contr’ignorância é um viveiro. Um lugar onde as crianças são ensinadas a amar um livro desde a sua génese e em várias facetas. Desde a alfabetização, aulas de teatro, contação de histórias, ginástica, rodas de leitura, contato directo com os escritores e estas atividades que incentivam a vontade de elas permanecerem e continuarem presentes neste seio até à vida adulta”, descreveu Bel Neto. Ainda na mesma conversa, Neto referiu que a biblioteca representa uma escola para a vida. “Aqui as crianças importam”, confessou e contou que a Contr’Ignorância é um lugar onde sempre gostou de estar enquanto escritora infantil e recebeu de lá muito amor por parte das crianças que frequentam o lugar. “Elas já possuem um olhar direcionado para a aprendizagem das artes”, descreveu, apelando ao apoio das autoridades competentes a projetos do género.

A slammer Joice Zau, jovem que se notabilizou nos últimos três anos, a nível nacional e internacional, com a sua poesia através de Spoken Word a nivel nacional e internacional, também referiu que a Contr’Ignorância tem servido como “catalisador ou espaço público de expansão de muitos artistas periféricos, porque infelizmente nas nossas periferias não temos espaços culturais”. Observou também que os governantes não colocam espaços culturais nos bairros, por isso, estes pequenos espaços sociais servem muito para a expansão da sua arte e onde pode e fazer passar a sua mensagem. A biblioteca Contr’Ignorância é “um espaço de emancipação periférica através da leitura”, descreveu Zau.

Entretanto, para o jovem poeta José Paciência, que frequenta a Contr’Ignorância desde 2021, foi através desta biblioteca que se envolveu no universo poético, participando num SLAM que a biblioteca organizou. Foi ali que fez a sua primeira recitação de poesia, com o tema “Inconcebível”, escrito pelo próprio. O poeta contou que foi a partir daquele lugar que se sagrou “fazedor de Spoken Word”. Daí, trocou impressões com pares, o que o levou a participar de outras batalhas de Spoken Word. José Paciência acredita que, se em cada esquina das ruas de Angola tivesse uma biblioteca Contr’Ignorância, certamente, o índice de adolescentes rebeldes reduziria, a criminalidade seria extinguida, a prostituição, a imoralidade e, principalmente, a ignorância seriam erradicadas.

Refira-se que o mentor do projeto, Adilson de Jesus Bernabé Gonçalves, é um jovem natural de Luanda, docente da disciplina de Língua Portuguesa do I Ciclo do Ensino Secundário, afeto ao Ministério da Educação há pouco mais de cinco anos. Já trabalhou no Ensino Primário e no II Ciclo do Ensino Secundário, porém no ensino privado. Em 2020, iniciou a atividade bibliotecária, na Biblioteca Contr’Ignorância, motivado pela necessidade de levar os seus alunos e a comunidade em que reside a cultivarem o hábito e o gosto pela leitura. Hoje, por inerência de funções, tornou-se também um promotor cultural e literário.

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