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Criolense Kitchen Club, um espaço seguro com “comida preta afetiva”

Criolense Kitchen Club | 📸 ©Austin Bush
Criolense Kitchen Club | 📸 ©Austin Bush

É o final de uma tarde quente de outono. Na colina íngreme da Rua Damasceno Monteiro, no número 12, flui um aroma tostado, ligeiramente adocicado. Saídos diretamente da frigideira da cozinha do restaurante Criolense Kitchen Club, os dadinhos de tapioca — pequenos cubos envoltos em tapioca granulada, queijo e temperos — surgem como o complemento ideal para apreciar a vista do miradouro da Graça. 

Este prato, inspirado pelo chefe Rodrigo Oliveira, do restaurante Mocotó, em São Paulo, “foi e continua sendo o que mais nos segura e permite pagar colaboradores. É o que mais emociona as pessoas e a gente também”. Quem o diz é Taís Vieira, afro-brasileira de 40 anos, uma das três pessoas responsáveis pela Criolense. Um projeto “feminino” que tem como “fio condutor a comida preta afetiva”. 

A ideia surgiu após a pandemia, partilha Rei Anunciação, outro membro pertencente ao projeto. “Nós temos a mesma história de casa, de aprender, de cozinhar e fazer”, diz. Tendo como base a cultura gastronómica afro-brasileira, passada de geração a geração, decidiram abrir este espaço no bairro lisboeta, em parceria com o Hangar — Centro de Investigação Artística. 

“Eu conheci o Rei no Rio de Janeiro e a Thaís aqui em Lisboa e, a partir deste ponto, [o Rei] apresentou para a gente o projeto e percebemos que era uma boa oportunidade de fazer esse trabalho coletivo”, afirmou Ana Passos, a terceira pessoa encarregue pelo projeto. 

Queriam cozinhar “como se fosse um quilombo”, explica Taís. “É normal a família preta se juntar normalmente aos sábados e fazer aquelas refeições típicas de panelão”. Por isso, quiseram “transformar tudo isso, toda essa vivência de dentro de casa para abrir para o público. Uma nova pegada contemporânea”, completa. 

Fizeram uma “releitura da comida” afro-brasileira e têm planos de experimentar combinações de sabores de diferentes culturas. No entanto, a restrição de espaço atualmente impede a total exploração dessas possibilidades. “Às vezes, queremos fazer uma coisa mais levada para a África, por exemplo, mas requer que tenha mais condições de preparo e armazenamento que a gente não tem aqui por enquanto. Então a gente ainda está trabalhando dentro do que a gente pode oferecer e fazer a nossa mistura”, elucida Rei. 

Neste pequeno restaurante, não só se ergueu um local para celebrar e conectar, mas também um refúgio seguro para pessoas negras e a comunidade LGBTQIA+. A Criolense afirma-se não apenas como apoiantes de causas sociais, “mas também é uma”. 

“Somos também LGBT, mulheres, queer. As interseções entre diferentes tonalidades pretas e latinas, sexualidades e identidades de gênero multiplicam os sabores, alianças, afetos e culturas. A CkC se constrói a partir do cruzamento desses ‘paladares decoloniais’”, pode ler-se no seu manifesto partilhado nas redes sociais. 

A ideia também era exatamente essa, você entrar nesse lugar e se sentir confortável, sendo preto, veado, sapatão, a ideia era essa

Taís Vieira

“Como homem preto, eu já sou uma [causa]”, partilha Rei. “É uma luta, sofrendo racismo todo dia, na rua e dentro dos lugares, e o que pra mim fortalece [a Criolense] é entender que a gente pode fazer isto, por exemplo, e pode ter sucesso com uma coisa muito simples, com algo que herdamos.” 

Estes colegas da área da restauração decidiram dar um passo à frente, afastando-se do ambiente por vezes hostil desse setor. Reconhecendo as suas próprias competências, optaram por empreender e abrir o seu próprio negócio. “A força veio dessa questão de criar um ambiente para as pessoas se sentirem confortáveis, porque há muitos momentos que você chega em alguns lugares onde é nítido que você não é bem recebido. Então, a ideia também era exatamente essa, você entrar nesse lugar e se sentir confortável, sendo preto, veado, sapatão, a ideia era essa. Além de entregar uma boa comida, mas também ter um ambiente onde você se sinta acolhido”, disse Taís. 

“O cliente se sente acolhido e a gente também se sente acolhido dentro da nossa atmosfera. É fundamental para que a gente possa ter equilíbrio aqui dentro e cada um consegua ajudar com a sua expertise, conseguindo fazer o nosso trabalho com excelência. A Criolence tem essa proposta de ser um trabalho, que a gente consiga fazer um trabalho mais leve, que tem que ser seguro para gente”, completou Ana.

Não desejam, por isso, replicar as opressões vivenciadas em experiências de trabalho anteriores. Isso aplica-se a qualquer indivíduo que colabora, permitindo que cada um seja autêntico, sem julgamentos sobre escolhas pessoais, como o estilo de cabelo ou o vestuário. Para os responsáveis da Criolense, essas questões não têm relevância; o foco está no profissionalismo e na execução eficiente das tarefas. “Então a gente também quis acabar com essa quebrada, restaurar a restauração. O cliente não tem sempre razão. Ele não pode chegar aqui e maltratar nossos colaboradores e muito menos a gente”, referiu Rei. 

Esta cozinha contemporânea de inspiração afro-brasileira tem imenso para oferecer a quem a visita. A feijoada, a coxinha preta, a rabada com polenta e agrião, “que aquece a barriga”, e as clássicas asas de frango, são algumas das iguarias que os responsáveis recomendam vivamente não perder.

Além da oferta gastronómica, a Criolense fornece catering e promove o evento Sunday Money, “um evento beneficente para que a gente possa conseguir angariar dinheiro e conseguir construir uma cozinha de produção”, explica Ana, a chefe de sala do restaurante. 

Nestes eventos, convergem a gastronomia, a arte e a música. No mais recente, a união entre samba e feijoada destacou-se como uma combinação irresistível, conforme partilhado pelos três organizadores, que desejam também alcançar mais pessoas negras. Estes eventos têm lugar aos domingos e são anunciados nas redes sociais do restaurante.

A cozinha é o “elo central” deste projeto e, para que consigam explorar novas aventuras, precisam de expandir as instalações, de forma a fortalecer a capacidade do local. Como explica Taís: “A gente tem um projeto que começou com soft-opening, continua ainda, mas não conseguimos ainda desenvolver, então está sempre em work in progress.”

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