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Mr’Correia O Preto: “A escrita é que me escolheu”

Mr'Correia O Preto | DR
Mr'Correia O Preto | DR

Neil Correia, mais conhecido como Mr’Correia O Preto, é um escritor que não sonhava ser escritor. Na verdade, o seu maior desejo enquanto crescia era tornar-se jogador de futebol. Quando se mudou de Angola para Portugal, em 2017, licenciou-se em Engenharia Civil. Mas de onde surgiu a paixão pelas letras, então? Segundo o próprio, foi a necessidade de sentir a dor do outro. 

O seu primeiro livro, intitulado Metades de um só – As várias partes de mim, é uma obra que traz temáticas universais interpretadas por uma só pessoa, mas em diversas perspetivas. Como autor, Mr’Correia O Preto quer colocar em palavras os sentimentos das pessoas, gerar autoconhecimento. O escritor, além de declamar poesias em eventos literários, também escreve textos personalizados para casamentos, lançamentos de marcas, entre diversas outras atividades. Correia ainda participa de competições de Slam, como o Slam Trafaria. “Nesse processo todo conheci muita gente da poesia. E o objetivo também é trabalhar para que possamos viver disso, apesar de ainda ser difícil”, afirma.

“Quanto à escrita, a escrita é que me escolheu. O meu sonho, desde pequeno, sempre foi ser jogador de futebol profissional. E as dificuldades que tive no mundo do futebol acabaram por despertar certos sentimentos e sensações dentro de mim. Sempre fui uma pessoa muito positiva. Por mais que as coisas estejam a correr mal, eu fico tipo ‘não te preocupes, se está a correr assim, vai terminar bem’. Eu acredito que de situações negativas podemos tirar algo positivo”, explica.

Por mais que o seu sonho estivesse dentro dos campos de futebol, o escritor conta que a carreira no desporto não teve o resultado esperado. “Isso acabou por despertar uma certa empatia. Comecei a aprender sobre empatia, que não é só sentir a dor dos outros, mas sentir a dor dos outros e fazer algo para poder suprir essa dor. E, a partir daí, começou a nascer a escrita, comecei a escrever primeiro músicas, cantava rap e tudo mais. Criei um blog, o intuito do blog já era escrever um livro. Postava sempre um texto por semana, e as pessoas sempre diziam escreve isso, escreve aquilo”, diz.

Muitos escritores têm na leitura o primeiro fator de curiosidade para iniciar a jornada na escrita. No entanto, o autor aponta que nunca foi um leitor assíduo. “As pessoas dizem que para ser escritor tens que ler muito e eu me formei em Engenharia Civil, ou seja, não gostava de ler. Só tinha lido um livro na minha vida. Mas sempre gostei muito de ouvir, sempre fui muito empático. E acabei por me tornar escritor”, considera.

Para Mr’Correia O Preto, viver da escrita ainda é uma expetativa distante tanto em Portugal, quanto em Angola: “Acho que a maior dificuldade é que ainda não posso mas, se pudesse, vivia da escrita. Então a maior dificuldade é essa, é tu não teres tantos exemplos em Angola e Portugal de pessoas vivendo só da escrita. Ser escritor ainda nem é considerado uma profissão, estás a ver?”, salienta.

O autor alega que as palavras costumam sair para o papel muito facilmente. “A nível particular, a maior dificuldade para mim é manter uma consistência de postar, por exemplo, divulgar o meu trabalho quase todas as semanas e tudo mais. Quanto a escrever, é muito tranquilo, escrevo textos grandes em cinco, seis minutos”, elucida.

A vida de um escritor, que já não é fácil, fica mais desafiadora quando se é um homem negro e imigrante. No entanto, o autor faz questão de usar o preconceito como uma forma de autoconhecimento. “Como dizemos, o preconceito é o prato do dia. Mas é bom, no sentido de que, quando és discriminado, de uma certa forma, passas por um processo em que fazes uma reflexão. Quando fazes uma reflexão, sobre ti e sobre o por que estás a ser discriminado, acabas por, de certa forma, te conhecer melhor. E aí é onde está o segredo: quando te conheces melhor ou quando queres te conhecer melhor, acabas por descobrir a tua história”, aponta. “Por exemplo, nós, africanos, não sabemos a nossa história. Sabemos que somos o berço da humanidade, que toda a vida começou no continente africano, mas as histórias que ensinam em todos os países é que fomos escravos. Seja qual for o país, vão dizer ‘olha, tu foste escravo, colonizaram-te, descobriram-te’. Quando vais mais dentro [da História] começas a descobrir que, afinal, a anatomia, a matemática, partiram do continente africano. Que fomos a primeira potência mundial do mundo, que nós é que tínhamos o conhecimento, que o primeiro homem foi negro e assim sucessivamente”, expõe. 

É por isso que, nos eventos de poesia que frequenta, Mr’Correia procura trazer essa indignação para fazer as pessoas pensarem. “Sempre que vou a eventos de poesia, declamo textos sobre racismo, sobre ser imigrante, sobre ser preto. Por isso, o meu nome artístico é Mr’Correia O Preto. Para já quebrar aquele paradigma. Estás a vontade para de me chamar de preto, porque eu sei quem eu sou, eu sei de onde vim. E talvez tu não saibas, então é uma oportunidade para eu explicar, para te ensinar”, alega.

O escritor participa de competições de Slam, que são também uma forma de protesto por meio da arte. “Comecei de um jeito bem estranho. Porque fui para um evento de poesia e, na altura, estava muito sonante a guerra na Ucrânia. Na altura em que pessoas europeias, por serem pretas, eram postas de lado ou na última fila e só entravam nos autocarros depois dos cães. Escrevi um texto sobre isso. E disse, ‘não, esse texto não é para fazer um vídeo, não é para eu postar. Esse texto tem que ser em palco’”, declara. 

“Fui para um evento de poesia e estava a acontecer o Slam. Inscrevi-me na mesma noite, na altura, era só para declamar o texto. Eu nem sabia que existia ou que era uma competição”, diz.

Hoje em dia, no mundo todo, a maioria das pessoas não está bem. As pessoas estão frustradas, e não tiram um tempo para pensar ou refletir o porquê

Mr’Correia O Preto

Segundo Correia, nos eventos de Slam ou de poesia, as pessoas vão à procura de entender as suas emoções. “Acaba por ajudar porque são desabafos, desabafos vividos de uma individualidade mas que afetam o coletivo. Acabam por ser coisas que, por exemplo, tu queres dizer, mas não sabes como dizer, então tem aí alguém a dizer por ti”, alega. “Porque esses eventos de poesia e Slam, mostram-te que estás a viver situações que não sabes que estás a viver. Por exemplo, se estiver num relacionamento tóxico e tiver alguém a declamar sobre isso, tu vais dizer ‘essa sou eu e não sabia’”, ressalta. 

O sentimento de pertencimento e acolhimento é imenso: “Depois é também acolhedor, pessoas que se sentem abraçadas. Porque uma coisa é verdade, hoje em dia, no mundo todo, a maioria das pessoas não está bem. As pessoas estão frustradas, e não tiram um tempo para pensar ou refletir o porquê. E quando tem alguém no palco a declamar com tanta energia e a contar a tua história, sentes-te abraçado. São várias as pessoas que depois de eventos chegam ao teu lado, dão um abraço, agradecem. E no final do dia, é isso que conta. É despertar as pessoas, acolher as pessoas”, observa.

Embora não tenha um tema principal nos seus textos, o mote que o norteia são as emoções e os problemas sociais. “Normalmente escrevo sobre tudo aquilo que sinto. E o meio social, coisas que acontecem no mundo, acabam por influenciar um bocado. Cá em Portugal, por ser um país racista, a maioria dos textos que declamo são sobre o racismo. Se estivesse em Angola, seriam textos sociais, sobre o governo, fome, despertar a mente das pessoas. Não existe um tema em específico. Acordo, vejo uma notícia, ponho-me no lugar de uma pessoa e escrevo sobre isso”, destaca.

O conhecimento sobre as relações humanas e sobre empatia podiam tê-lo direcionado para a Psicologia. “Ttive vontade de fazer Psicologia quando estava no segundo ano da universidade. Faltava um ano para terminar a faculdade. Pensei, ‘não estou aqui a fazer nada’. Eu tinha que ir para um curso onde pudesse conversar com pessoas, ajudar pessoas, exprimir as emoções das pessoas. Porque, quando estou a tratar dos problemas, a maioria das pessoas tendem a estar ali superficialmente. Eu gosto de ir ao fundo da questão. E aí é que comecei a perceber que sempre fui empático. Mas existem características que temos e não sabemos, por não nos conhecermos tanto”, explica.

“Nunca passei por dificuldades, como fome e tudo mais mas os meus pais sempre me ensinaram a tratar os outros com amor e a partilhar. Então, também partiu um pouco da educação que recebi, de olhar sempre os outros com igualdade, ninguém é maior ou menor que eu”, comenta.

As raízes angolanas do escritor também são uma característica marcante nas suas poesias. “Para além do meu sotaque, que não muda por nada, nos textos entra sempre um calão, e as pessoas já percebem, ‘esse é angolano’. Sou o tipo de artista sem filtros. Normalmente, chego e apresento-me, ‘olha eu sou o Mr’Correia O Preto e vamos sangrar [divertir-nos] bastante’ que é uma gíria em Angola”, destaca.

Por meio da poesia, o seu maior anseio é mudar o mundo. “A maior inspiração de todas é deixar o mundo melhor do que o encontrei. Acredito que mudar o mundo é começar a mudar as pessoas que estão ao nosso redor. Outra grande inspiração é tocar um coração por dia. Se eu conseguir fazer isso, estou com o dia ganho. E depois, tu sabes de onde vieste e aquilo que queres alcançar. Olhar para as pessoas do lado e perceber que o que estás a dizer não é só palavra, não é só escrito, não é só uma história qualquer. Porque as pessoas se identificam, pessoas choram, pessoas exprimem emoções”, revela. “As pessoas chegam ao teu lado, ‘olha, hoje tu salvaste-me, eu estava à beira da depressão’ e tu acabaste por me salvar”, aponta.

Mas nem sempre Mr’Correia se sentiu tão seguro exercendo o ofício. “Tinha receio de dizer às pessoas ‘eu sou escritor’, porque sentia que escritor é uma palavra muito pesada e eu não queria carregar a responsabilidade de ser escritor. Então, fui a um evento numa escola secundária e tinha alunos especiais. Declamei dois ou três textos. No fim, um dos alunos veio dar um abraço e disse-me obrigado, com lágrimas nos olhos. E depois, a professora dele chegou perto de mim e disse que usaria alguns textos do livro para ajudar aqueles meninos. Então, a partir daí, eu disse que iria assumir aquela responsabilidade, ‘eu sou escritor’”, relembrou.

Entre declamar e escrever, para o autor não há diferenças, maiores ou menores dificuldades. “É difícil porque escrever e declamar dão sensações diferentes. Porque quando estás em palco, a declamar, te transformas. Gestos saem de uma forma que não imaginas. Mas também, por outro lado, quando estás a escrever, acabas por te envolver muito”, diz.

Doravante, Mr’Correia O preto pretende continuar no mundo das letras. Seja ao declamar poesias, participar de competições de Slam ou ao escrever um livro. “Quero lançar a segunda edição do meu livro. O título vai ser o mesmo, provavelmente, mas diferente do primeiro irão constar textos mais profundos, a nível social, temas bem mais pertinentes e fortes. Para ensinar e ajudar algumas pessoas, principalmente jovens. Porque eu gostaria que me dissessem o que digo às pessoas quando eu tinha a idade delas. No mais, manter a consistência no que concerne a eventos. Declamar em casamentos, lançamentos de marcas, ser convidado a contar histórias… Continuar a tocar corações e manter-me fiel a mim mesmo”, finaliza.

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