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Sandra Poulson leva Luanda à Bienal de Veneza com “Onde o Asfalto Termina e a Terra Batida Começa”

A forma como o formal e o informal ditam o movimento das gentes em Luanda é a base do trabalho decolonial de Onde Asfalto Termina, e a Terra Batida Começa, que Sandra Poulson levou até à Bienal de Veneza deste ano. O foco do trabalho – comissionado pela Bienal College Art – está no ponto onde a terra batida encontra o asfalto e estabelecem-se as noções de central, periférico, habitável, não habitável, local e global.

Na obra, a artista angolana, a residir em Londres, reflete e questiona as estruturas sociais e comportamentais que moldam a forma como as pessoas interagem, literalmente, no asfalto e na terra batida. “Tenho trabalhado com investigação do pavimento da cidade e percebido através da pesquisa como é que a cidade se organiza relativamente ao formal e ao informal. A cidade de Luanda nasce no Porto e, durante o tempo colonial, quem vivia na baixa, na cidade de cimento, eram os portugueses. Então, para as pessoas nativas angolanas, negras, quando entravam nessa baixa, nessa cidade de cimento, havia uma necessidade de se assimilarem, de assimilarem a cultura portuguesa e assimilarem também o espaço urbano para que fossem lidos de forma a conseguirem sobreviver”, explicou-nos a artista. “Há toda uma questão de nos adaptarmos e assimilarmos o catolicismo, a língua portuguesa, mas também a forma de vestir e de renovação do corpo. Como a baixa tinha pavimento formal, as pessoas que ali movimentavam-se quase que não tinham pó nos pés, digamos assim. As pessoas que vinham das zonas circundantes, e que viviam nos bairros e nas áreas informais, quando entravam na cidade tinham essa necessidade de se renovarem para serem aceites.”

Feita de papelão descartado e amido, esta instalação de papel mache inclui extratos da paisagem urbana que constituem a atividade e as divisões humanas. A videoinstalação multicanal exibida nas paredes laterais é composta por vídeos filmados através de um telemóvel e que exibem diferentes momentos, eventos e materiais que ocorrem e formam a cidade. Os visuais são complementados por informações sobre o rigoroso e extenso processo de documentação que alimentou a pesquisa de Poulson.

O tema acaba por cruzar-se com o mote da edição deste ano do evento, “O Estrangeiro Por Toda a Parte”. “Para mim, é um título até um pouco controverso, mas muito interessante porque deixa uma abertura para como as pessoas conseguem e vão pensar em ler o título. De certa forma, a minha proposta para esta obra, na verdade, quase não precisou de tentar responder ao título, porque já é muito sobre essa relação com o ser um pouco estrangeiro numa cidade, num país em que se é nativo. A minha avó, por exemplo, andava sempre com um lenço de rosto e um lenço para limpar os pés quando entrava na cidade, quando ia a uma instituição, trabalhar, a um banco… Há uns quatro anos, se não me engano, estive em Luanda a fazer uma pesquisa para um outro projeto, e vou com uns ténis muito sujos, muito empoeirados, que eu achei que, pronto, que eram perfeitos porque a cidade é tão assimétrica em pavimento e eu achei que os ténis iam quase que estar camuflados. E apercebo-me que esses ténis, por estarem tão sujos, acabam por ser o início de muitas conversas que tive, conversas acidentais e incidentais com pessoas na cidade. Lembro-me de, não só, por exemplo, um rapaz que estava a engraxar sapatos fora de um café a que eu ia muitas vezes todos os dias, pedia-me para engraxar e para lavar os meus ténis. Ele já me “estigava” [gozava], dizia que já não dava, que já não conseguia olhar para mim se ele não lavasse os ténis. Até que um dia aceitei e tivemos uma conversa de umas duas horas. Outras pessoas também, lembro-me de pararem na rua e perguntarem se eu estava bem, se tinha perdido a minha mãe, onde é que eu tinha estado, porque a leitura que havia do meu corpo, e também num contexto de uma sociedade colorista e racista, com separações sociais e com uma diferença sócio-económica tão grande, a leitura que havia deste corpo era que este corpo não teria andado numa rua não asfaltada e, se tivesse, não teria sido por tempo suficiente para os ténis estarem naquele estado”, fundamenta a artista sobre as dinâmicas sociais que a conduziram até ao desenvolvimento da obra.

A inauguração da 60a edição da Bienal de Veneza aconteceu neste sábado, 20 de abril, e estará aberta ao público até 24 de novembro de 2024.

Com curadoria do brasileiro Adriano Pedrosa, diretor artístico do Museu de Arte de São Paulo (MASP), a mostra deste ano coloca novas vozes artísticas em destaque.

O título Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere foi inspirado numa série de trabalhos iniciados em 2004 pelo coletivo Claire Fontaine, criado em Paris e radicado em Palermo, na Itália. As obras consistem em esculturas de neon em diversas cores, que reproduzem em diferentes idiomas as palavras Foreigners Everywhere. Já a frase, por sua vez, faz alusão ao nome de um coletivo de Turim que lutou contra o racismo e a xenofobia na Itália, no início dos anos 2000. De acordo com Adriano Pedrosa, a expressão Stranieri Ovunque tem vários significados. “Em primeiro lugar, onde quer que você vá e onde quer que esteja, você sempre encontrará estrangeiros – eles/nós estamos em toda parte. Em segundo lugar, que não importa onde você esteja, você é sempre verdadeiramente, e no fundo, um estrangeiro”.

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