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Tony Omolu leva ao palco a cultura ancestral dos orixás

Tony Omolu | ©Gustavo Felman/Afrolis
Tony Omolu | ©Gustavo Felman/Afrolis

No epicentro da expressão de Tony Omolu está a reverência ao orixá da terra, ligado à cura de enfermidades e ao poder da transformação, o Omolu, uma divindade venerada nas religiões afro-brasileiras. Em todas as suas performances, a artista entrega-se de corpo e alma aos palcos à dança dos orixás, emergindo nas profundezas da cultura “da resistência negra”.

No seu percurso como artista híbrido, Tony Omolu navega entre as correntes da pesquisa prático-reflexiva-teórica, apresentando-se como ator-dançarino, uma definição cunhada por Eugênio Barba para descrever artistas que exploram o comportamento pré-expressivo humano em situações de representação organizada. Além disso, é também cofundadora do coletivo Afrontosas, uma associação cultural que promove pessoas negras queer ligadas ao mundo das artes, da educação e da celebração.

Mas a sua experiência não se limita aos palcos. Estende-se para abraçar grupos performativos da cultura popular, como a congada de Minas Gerais. O pulsar rítmico das suas expressões artísticas vai além das fronteiras brasileiras, encontrando uma nova casa artística em duas manifestações da cultura performativa-musical de Cabo Verde: o Batuko e o Kola Son Jon, cultura pela qual se apaixonou assim que se mudou para Lisboa, em 2018.

Podes contar-nos como é que começou o teu interesse pela dança afro-brasileira e pela estética dos orixás? 

A minha ligação com as danças afro-brasileiras é profundamente enraizada na minha vivência como pessoa negra e periférica. Por isso, tenho essa relação com o samba. Há também uma expressão da cultura popular no Brasil, que se chama Congado, uma festa do povo negro, com influências religiosas. Estas duas expressões culturais foram muito fortes na minha formação. Durante a adolescência, fui imersa nas danças urbanas, apesar de nunca ter sido uma dançarina de danças urbanas. No entanto, a influência de artistas da década de 1990, especialmente do Michael Jackson, marcaram-me bastante. A mim e à minha geração.

Mas se eu tivesse que dar dois pontos de referência, é o samba carnaval, a congada e a capoeira também. Foi algo que fiz na minha infância, e a minha vida toda. Esse é um aspeto dessa minha formação, com as danças afro-brasileiras. A minha relação com os orixás surge porque nasci dentro de um templo, de um “terreiro”. Fui criada a vida toda dentro da religião afro-brasileira. Então para mim, estar a desenvolver este tipo de dança não foi complexo, porque isso sempre esteve na minha vida. Fui criada, formada religiosamente, dentro de Umbanda. Uma religião afro-brasileira, que nasceu no Brasil, que depois tem o Candomblé. Sendo bem genérica, o Candomblé é a religião dos orixás.

Mesmo estando na Umbanda, sempre tivemos muitas relações com o Candomblé. Mas o que me despertou [o interesse] foi quando entrei numa companhia chamada Companhia de Dança Afro, da minha cidade, criada por um casal de mestres de dança afro do Rio de Janeiro, o Edilson e a Dulciméia. Foi ali mesmo onde eu realmente me desabrochei, para essa técnica de dança, para esse estilo de dança. Isso ficou em mim durante muito tempo. Quando eu mergulhei mesmo na investigação, na pesquisa sobre a dança dos orixás, a movimentação estética dos orixás, foi quando eu entrei no mestrado para fazer a investigação da metodologia e técnica de dança do meu mestre, o falecido Augusto Omolu. Foi ele que criou a dramaturgia da dança dos Orixás.

Fiz um mergulho profundo na investigação, tanto da técnica, quanto da cultura dos orixás. Depois fui para a Bahia, onde fiquei oito meses em pesquisa de campo. Além de ficar lá com alguns trabalhos com o meu mestre, também fui experimentar outras estéticas, outras técnicas de dança. Talvez a que mais me influenciou foi a técnica de dança afro desenvolvida pela companhia de dança do Balé Folclórico da Bahia. 

Porque é que foi esse tipo de dança que mais te influenciou?

Acredito que foi aquela com a qual mais me identifiquei e na qual trabalhei mais tempo, digamos assim (risos). Eles têm uma mestra de dança lá, que se chama Nildinha Fonsêca, que é uma grande bailarina da companhia do Balé Folclórico da Bahia. Ela ministrava um curso numa escola de dança e eu fui estudar com ela e, depois, eu fazia aulas com a companhia. Fiquei muito conectada também com o Balé Folclórico da Bahia. Essa é a minha influência. Eu sempre estive envolvida com danças afro-brasileiras, porque a dança dos orixás também é uma dessas danças. Só que a gente faz essa diferenciação tem todo esse tópico religioso. A dança afro-brasileira é um guarda-chuva. 

Depois, participei em outra companhia, o Baiador, que foi formado como parte das atividades de pesquisa em dança lideradas pela minha orientadora de mestrado. O Baiador não era apenas um grupo de dança, mas também um espaço dedicado à investigação e prática pedagógica. Nele, realizamos uma extensa pesquisa nas danças afro-brasileiras, abrangendo o Congado, o Jongo e uma dança maranhense chamada Cacuriá. Neste grupo de dança, experimentei outras tantas danças afro-brasileiras.

O que significa Omolu? Tanto tu, como o teu mestre, Augusto Omolu, usam esse nome. 

Omolu é o nome do meu orixá. Cada pessoa carrega um orixá, geralmente um ou dois. Então, você vai ao templo para conversar com o sacerdote por meio do oráculo. Descobre qual é o orixá que te acompanha e te protege. No meu caso, é Omolu, o mesmo orixá do meu mestre, o que explica o meu nome, Tony Omolu.

Omolu é o orixá que detém o poder da cura neste panteão de divindades. Ele representa tanto a vida quanto a morte. Alguns estudiosos sugerem que, devido à época da varíola e outras doenças graves, Omolu é também o orixá que protege contra essas enfermidades. Portanto, está associado ao poder da vida e da morte. Além deste, tenho outro orixá feminino, Oxum — estas informações podem ganhar muitas profundidades — normalmente cada pessoa carrega um orixá feminino e outro masculino… dentro dessa designação que a gente dá de masculino e feminino.

O meu mestre Augusto dizia que a dança dos orixás é uma trilogia, de canto, dança e música

Na performance que realizaste para a abertura da Escola de Verão Feminista Sem Fronteiras, em Lisboa, disseste ter usado algumas energias femininas: a Oxum, a Iansã e a Pomba Gira. Escolheste-as especificamente para essa performance ou são energias que usas regularmente?

Quando decidi inaugurar esta fase artística em Portugal, tive que selecionar entre minhas habilidades, técnicas dominadas, dos meus estudos em dança e teatro. E isso foi uma escolha deliberada. Foi nos processos de pensar o que eu posso apresentar. Eu estou nesta onda de transição, de sair dessa energia masculina, de discutir sobre o patriarcado, masculinidade, assumindo-me como pessoa não binária, tentando excluir as expressões masculinas ao me referir a mim mesmo. 

Quando decidi que iria apresentar a minha verdade, aquilo que é forte em mim, que é algo que eu acredito, que eu sei fazer também, decidi apresentar uma dança dos orixás femininos. Fiquei pensando na composição das energias… a Pomba Gira não é exatamente uma orixá, mas a gente considera — se você olhar no panteão dos orixás não existe a Pomba Gira — ela é uma expressão, um desdobramento do que seria uma orixá. Dentro desse trabalho que se chama Iabás, faz muito sentido. 

Como os orixás têm essas energias, são expressões da natureza, eu quis trazer essa energia. Eu escolhi a Oxum porque ela é essa energia da água doce, no Brasil — digo isto a partir do meu lugar de fala. Quis trazê-la por ser muito importante para mim, é a minha orixá, é a orixá do meu pai de santo e da minha casa. E a Insã, que é essa energia mais impetuosa dos ventos, das tempestades, de uma impetuosidade de vida, de enfrentamento com a vida, achei que essa seria uma óptima composição. 

Porquê?

Pensando que essas são três energias femininas e um dos fundamentos do feminismo negro no Brasil é trazer as energias das ancestrais. Então Oxum, Pomba Gira e Insã são também expressões das mulheres negras. Daquilo que movimenta a energia de uma mulher negra no mundo. Essa questão de relacionar com um dos alicerces do feminismo negro, faz parte do processo de pesquisa, de investigação. Foi por isso que eu escolhi inaugurar a minha carreira, digamos, em Portugal, com essas três energias.

Também é importante mencionar que este trabalho com o nome dos orixás, a palavra orixá e essa investigação que eu faço está dentro do contexto da mitologia iorubá, da Nigéria. Hoje, a referência dessa comunidade é a Nigéria, mas nós sabemos de todo o tronco cultural que significa ser yorubano. No Brasil tem algumas outras linhagens culturais e troncos linguísticos, mas nesse caso a palavra orixá já é essa divindade, que é yorubana. 

Se fosse de outro tronco linguístico teria outro nome, como o caso, por exemplo, se for Bakongo, desse tronco que a gente fala Bantu, de modo geral, seria Nkisi. Se fosse Fon, que tem o Benin como referência, esse tronco-linguístico seria Vodun. São divindades diferentes que têm expressões, têm comunidades e têm praticantes no Brasil.

Posteriormente, podes mudar essas energias caso assim o entendas?

Sim, dentro da dança dos orixás nós temos inúmeras possibilidades de composição. É importante mencionar que, quando falamos das danças dos Orixás, o que eu levo para palco, não só eu ou, por exemplo, o Balé Folclórico da Bahia. Nós levamos para o palco a estética, a técnica da dança. E essa é uma estética que tem aquela expressão religiosa. Cada orixá tem uma dança, cada orixá tem um toque de música, cada orixá tem um tipo de canto, cada orixá tem uma cor, tem uma roupa, tem uma planta relativa a ele. Isso tudo são elementos estéticos que a gente traz, performativos e dramatúrgicos. 

O meu mestre Augusto dizia que a dança dos orixás é uma trilogia, de canto, dança e música. Este é o aspecto da dança dos orixás que eu faço. Escolhi essas três energias porque tinha a ver comigo naquele momento. Outro aspecto também que eu acho importante salientar é que nesse trabalho que eu optei, eu não faço uma demonstração muito fidedigna ou próxima do que é feito na tradição, digamos a dança do terreiro, por exemplo. 

Nesse espetáculo das Iabás, dentro da técnica que eu aprendi com o Augusto, eu trabalho mais o aspecto da energia performativa. De uma expressão dramatúrgica, performativa, física, expressiva. Quando você olha o figurino nas Iabás, não é possível identificar exatamente qual orixá estou representando, mas sim pela movimentação e pela dança.

Além disso, também não levo toda a coreografia tradicional porque cada uma tem uma coreografia fechada. Eu faço uma mistura, trago até alguns movimentos contemporâneos, de dança contemporânea. É muito teatral, eu sou muito influenciado por esse conceito de dança-teatro. Portanto, é um mesclo de procedimentos, estou usando essas expressões aqui meio duras, mas procedimentos teatrais também inseridos dentro da dança. 

Como é que podemos identificar cada orixá pela movimentação?

Por exemplo, dentro da Pomba Gira, é um trabalho que se conecta muito com o público e conversa com ele. Isso é interessante falar, nas Iabás, eu trago, por exemplo, os apetrechos, as ferramentas, os instrumentos de cada uma delas. Com esta orixá também levo uma taça vermelha, para tomar um espumante, uma bebida. Uso um adereço em cima da roupa que é preto e vermelho, que são cores relativas aos exus, também trago um leque, que também o usa muito. Na Oxum eu levo um espelho decorado, a sua expressão é toda feita tendo um espelho como referência. Na Iansã eu levo um que é uma espécie de chicote feito com crina de cavalo, originalmente. O meu não é. 

E que mensagem é que desejas transmitir ao público ao trazer essas performances para Lisboa?

Para já, divulgar esta técnica que aprendi. Segundo, mostrar para esse público que esse tipo de trabalho não é só um trabalho exótico, folclórico, mas é também uma técnica de dança, uma expressão artística, estética e também política. Acabei de inaugurar uma nova performance também inspirada nos orixás, sobre Ossayin, outro orixá das florestas, detentor do conhecimento, da medicinal das plantas. Isto mostra como dramatúrgica e performativamente, essa nossa cultura, é uma cultura de resistência negra.

Os orixás são a nossa base ancestral, da diáspora, cada uma com uma configuração. No Brasil tem uma configuração, no Haiti tem uma configuração, em Cuba tem uma configuração, dentro do Brasil também tem algumas configurações, mas existe uma linha comum em todos, que é a devoção ao orixá. 

Então, a minha expectativa é mostrar para o público as qualidades performativas, interpretativas e de uma técnica de dança que no meu caso especialmente é uma dramaturgia da dança dos orixás, que tem uma referência no teatro, na técnica teatral da antropologia teatral. Quem criou a Antropologia Teatral foi o Eugênio Barba, um dos maiores dramaturgos e encenadores do século XX, mais conhecidos. Ele criou e inaugurou uma técnica de fazer teatro. 

Quero mostrar as potencialidades, estéticas, performativas, políticas. E pôr em diálogo para outras comunidades negras. Há muitas comunidades negras que não conhecem e que nunca viram, mas que automaticamente quando vêem, percebem, por conta de uma outra questão que a gente sabe, que tem a ver logicamente com as nossas origens. Também pretendo ensinar. A minha intenção também é, a partir disso, criar uma possibilidade de trabalho de dar aulas, de passar este conhecimento tão rico. 

Dizes também ter explorado a cultura performativa-musical de Cabo Verde, especificamente o Batuko e o Kola San Jon. O que motivou essa pesquisa?

Eu tenho feito uma investigação [sobre a cultura negra], e fiquei apaixonada imediatamente pelo Batuko e pela dança, especialmente, pela maneira de se movimentar. Depois, conheci o Kola San Jon, que tem muitas semelhanças com o congado. É uma festa de um grupo, feita na forma de uma procissão, tem os dançadores, tem os batucadores, tem aquelas pessoas são as responsáveis por um cuidado energético, espiritual. Esse formato é também uma festa em devoção a um santo, neste caso devoção ao São João.

No caso do Congado da minha região no Brasil, a devoção é a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito, que inclusive, é um santo negro. Então tem muitas semelhanças. Quando eu vi a Kola, fez-se automaticamente luz (risos). Me pegou mesmo, me tocou, mexeu comigo. Eu ainda não fiz nada objetivo. Vou trazendo nessa minha corporalidade. 

Eu tenho essa admiração, não conhecia nenhuma das duas expressões, nem o Batuko, nem o Kola. Desde que eu cheguei aqui, tive muitos contactos com a comunidade cabo verdiana, acho que foi a comunidade com a qual eu mais me relacionei. Portanto, tive esse acesso para conhecer essas expressões. Tenho essa admiração e é possível entender uma semelhança, por exemplo, no batuko, se verificarmos temos o pé no chão, que parece muito com samba de roda que é feito na Bahia. A gente vai reconhecendo essas semelhanças de dança, de expressão corporal, e isso me atrai muito.

Partilhaste que futuramente pretendes passar o teu conhecimento sobre estas danças. Existe mais alguma área que aspiras explorar nos teus projetos futuros?

Neste ano, já criei três performances, de dança, dança-teatro. Criei esse das Iabás e o último, que apresentei no terreiro, que se chama a Calunga de Ossain. Estas duas têm essa relação performativa e expressiva com os orixás. Além dessa, também fiquei com vontade de criar algo em outra linha mais contemporânea, mais teatral, para poder diferenciar, para não ficar marcado como aquela pessoa que só faz esse tipo de trabalho. Não que eu achasse ruim, mas não é só isso [que eu faço]. 

Então eu criei em-cor-pada, que tem uma discussão mais política, tem a ver com os processos de migração, com o corpo negro, com o corpo queer. Eu estava com muita vontade de trabalhar a partir da palavra, da sonoridade da palavra. Por exemplo, no canto, nos orixás, tem muito a ver com a palavra, têm muita força energética e são muito importantes.

Gosto muito da palavra porque tenho uma formação no teatro, para além de também ter uma licenciatura em filosofia. [Quis perceber] o que é que a palavra reverbera, como cada palavra, cada sentido da palavra ou mini frases… como é que corpo todo reverbera a partir dos estímulos que essa palavra ou esse conceito me traz. Então, em-cor-pada, tem esse aspeto muito de diálogo com questões, por exemplo, contemporâneas, de sentimentos, desde amor, a militância, a filosofia, a literatura. Eu escolho várias frases, várias palavras, que eu vou fazendo uma apanhada geral e esse é o estímulo. 

Eu vou para o palco com essas palavras, e além de expressar tanto pela voz quanto corporalmente, eu também tenho uma relação forte com o público, porque [é ele] que escreve palavras no meu corpo. Eu levo algumas canetas e ofereço para o público a oportunidade de escrever no meu corpo uma palavra qualquer.  Este trabalho não tem esse diálogo como essas energias de dança ritual. Se eu tiver de denominar o que eu faço é dança contemporânea afro-brasileira, uma dança que não é feita, obviamente, no continente europeu. É feito dentro daquilo que nos toca, que nos mexe.

Eu perspetivo para o futuro, realmente poder levar a minha arte para mais lugares. Além dessa questão do ensino e de aprendizagem, eu quero muito ganhar os palcos. Quero muito ganhar os palcos. Quero poder falar sobre o meu trabalho de maneira mais consistente, por mais vezes. Quero levar minha carreira de artista, quero crescer, quero prosperidade artística.

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